Por: CARLOS ROSA MOREIRA
04/08/2024
11:58:35
COISAS PEQUENAS
...Isso nada
mais é do que aquele raciocínio imediato após ouvirmos algo que nos parece
estranho. A resposta vem pronta e parece lógica e correta. Acontece que eu não
falava do progresso dos homens, falava deste mundo mesmo, esta terra em que
pisamos, este mundo do qual comemos e bebemos desde o mais longínquo
antepassado da espécie. Este mundo que nos foi entregue com florestas verdes,
ar cristalino e águas límpidas. Este mundo piora muito, inexoravelmente. E não
pode ser de outro jeito, pois é sobre ele que amamos, nos multiplicamos,
sofremos e dele retiramos todas as nossas necessidades. E fui pensar nessa
piora do mundo por causa de uma coisa pequena, um pedacinho do mundo que existe
diante da minha janela. Nesse pedacinho de mundo havia mata e uma gentil
casinha. Na mata existiam duas jaqueiras, um pé de limão-galego, umas moitas de
capim-colonião, um bambuzal bonito a se lamentar com o vento, uns pés de
aroeira e vários arbustos que se misturavam com uma galharia danada.
Além disso, havia
os pássaros que brincavam no terreno. Posso garantir que por lá passaram sabiás,
bem-te-vis, pombos, rolinhas, sanhaços, pardais, canários-da-terra,
biquinhos-de-lacre, periquitos, maritacas e um ou outro pássaro estrangeiro
fugido de alguma gaiola, que no terreno buscava pouso e abrigo. Acho que vi um
canário-belga, certa vez.
Tinha a fauna
terrestre também, composta de gambás, ratos e micos, e dos gatos que
perambulavam silenciosos como pequenas onças.
Notava-se algo de
caótico naquela floresta urbana embaixo da minha janela. Um dia foi
floresta virgem, arrasada e abandonada pelos homens, transformada em terreno árido.
O caos vegetal era a tentativa do mundo de recuperar o que lhe foi tirado, desbastado,
cortado e deixado para lá.
Então o tempo
passou, vieram as chuvas, os insetos, os ventos e os pássaros com as sementes,
e a terra vilipendiada recuperou-se. E sem preconceitos, pois ali viviam em
harmonia com a flora nativa os estrangeiros limão-galego, o capim-colonião e as
“nossas” queridas jaqueiras. Os olhos repousavam no emaranhado verde e se
distraíam com seus habitantes.
Separada do terreno
por um muro com um portão, havia a casinha. Era casinha antiga, do tempo em que
ainda não existiam edifícios na rua. Tinha telhas francesas, paredes pintadas
de branco, janelas azuis e uma treliça de madeira na parede dos fundos, sobre a
qual subiu uma hera que ninguém podava. No quintal floresciam hibiscos e rosas
e, num canteiro colado ao muro, hortaliças se misturavam ao mato comum. Um
sapotizeiro fazia a alegria dos passarinhos e dos morcegos. Vez ou outra
aparecia uma senhora de idade para mexer na horta. Um dia a senhora
desapareceu e fecharam a casa. Depois uns homens desembarcaram de um caminhão,
entraram no terreno embaixo da minha janela, derrubaram as jaqueiras, cortaram
o pé de limão-galego, as aroeiras, transformaram o bambuzal num tufo de cotocos
e deixaram a terra nua. Sobre ela construíram galpões com cobertura metálica.
Fizeram um estacionamento. Acabaram-se os trinados, mas há o barulho de motor,
buzinas e às vezes dispara um alarme gritante, cujo som estridente permanece
nos ouvidos mesmo depois de ter sido desligado. Não tardou para atacarem a
casinha. Cortaram o sapotizeiro, os hibiscos e as rosas, arrancaram a hera e a
treliça e cimentaram o quintal. Onde existiu a horta fizeram uma cobertura de
vidro e metal. A casinha foi pintada de um amarelo fulgurante. Quando bate o
sol, parece que as paredes gritam.
De vez em quando eu chego à janela, mas olho para o céu. Meus olhos se
ressentem da reverberação da luz e do calor sobre o metal e o cimento. Penso
que minha vida também é composta de pequenas coisas, entre elas olhar pela
janela. Recordo o terreno que se foi, levando consigo suas criaturas. E
confabulo num humilde exercício filosófico que é isso mesmo, o destino do homem
é transformar este mundo, e cada geração futura conhecerá apenas o mundo que
lhes dão e acharão bom, e se sentirão feliz.