Por: CARLOS ROSA MOREIRA
18/08/2024
07:11:16
BAS-FOND
É uma gente feia. Caras de todas as cores. É o povo. Nosso povo, nós. Gente a esquecer a fadiga, a desesperança, as humilhações, os aborrecimentos, as irresponsabilidades e os anseios frustrados da semana que passou. Tudo arrematado na cerveja, nas gargalhadas, nas palavras grosseiras. Em cada falta de vida existe muita vida. Coisas miseráveis traduzem intensos sentimentos humanos. No canto de uma árvore, uma prostituta velha segura o vestido e urina. Ouço o jato bater sobre a terra ao pé da árvore. Lembra a urina das vacas a bater sobre o pasto. Quase sinto o cheiro do mijo daquela mulher.
Lá do fundo do bar um rosto surpreendente me chama a atenção. É uma mulher bela, destoante. Está sentada com um negro alto de careca luzidia. Ele veste um terno branco sem gravata e calça sapatos sem meias. Ela está de camiseta regata preta. Sobre a mesa há várias garrafas vazias de cerveja. Ela é muito clara, pálida, chega a brilhar naquele ambiente de cores escuras. Seus cabelos negros compridos caem em mechas sobre os ombros delicados. A expressão é de imenso fastio. Fuma. Solta a fumaça para o lado, como um desabafo. Imagino que o tédio em seu belo rosto seja resultado de drogas, mas pode ser só tédio. O negro ri e conversa com um branco magrelo de aspecto asqueroso. Ela olha para lugar nenhum. Tem fascinantes olhos negros. Então seu próprio rosto surge dos confins da memória. Lembra-me a heroína das “Histórias contadas e outros poemas”, lidas lá atrás na infância. É o rosto de Bess, por quem fui apaixonado. A linda Bess de “negros olhos e tão negros cabelos”, que preferiu matar-se para não ver prisioneiro seu amado salteador das estradas. Imaginação faz cada coisa com a gente... A heroína era amor e determinação; a mulher do bar é pura sordidez, mas é bela e esse verniz traz algo extraordinário àquele lugar. Na calçada, duas negras magricelas bebem e ensaiam grotescos passos de “funk”. Um mendigo se aproxima e assiste àquilo com o olhar apalermado.
“A parte sem o todo não é parte”. Não é coisa alguma, penso eu. São tantas as vidas poucas que fazem aquele todo. O todo feio tem a beleza de ser interessante. As partes são horrendas. A lembrança no doce romantismo da infância somou-se à realidade e me desequilibrou. Deixei de fazer parte do todo. Minha alma está prestes a partir daquele purgatório e despencar para a escuridão da minha Idade Média particular. Assaltam-me a tristeza e a desesperança de cada parte do todo. Tomo meu rumo. Caminho pelas calçadas ao longo de fachadas melancólicas de mau gosto. Quero retornar às luzes, onde beleza é verniz repousante. Onde frágeis escoras sustentam miserabilidades, sejam de bolso, sejam de alma.