CARLOS ROSA MOREIRA
CARLOS ROSA MOREIRA
Membro do Cenáculo Fluminense de História e Letras, da Academia Niteroiense de Letras e da Associação Niteroiense de Escritores. Tem oito livros publicados, todos de crônicas e contos.

Por: CARLOS ROSA MOREIRA

03/11/2024

08:42:57

ES ESTE EL CAMINO PARA HONRUBIA?

Não, não queríamos ir a Honrubia, apenas nos “perdemos” em Castilla La Mancha e fizemos de Honrubia o nosso azimute.
ES ESTE EL CAMINO PARA HONRUBIA?
Evitávamos as grandes carreteras e seguíamos numa navegação estimada pelas estradinhas da Mancha e da Manchuela. Vimos olivais se fazendo de mortos, distantes colinas de pedras tão brancas que pareciam neve, moinhos, planuras, pétreas aldeias envoltas em quietudes seculares...

               ...Uma velha torre nos ermos daqueles horizontes lembrava que estávamos nos domínios de dois cavaleiros: o Cid e o Quixote. El Cid ou “O Senhor”, cortou cabeças, desventrou e com sua Tizona transformou em vermelho o ocre daquela terra. Imagino como seria a figura real de Rodrigo de Bivar, o El Cid. Fiquei um pouco decepcionado ao ver as armaduras nos museus e castelos de Madri, Toledo e Segóvia. Com meus setenta e cinco quilos distribuídos em um modesto um metro e setenta e quatro, pareço um homem grande numa foto entre duas armaduras de guerreiros daqueles tempos. “Pequeños”, disse um turista ao meu lado. Mas a imagem que tenho de El Cid não é produto da minha imaginação nem das estátuas das praças espanholas, o El
Cid que está na minha cabeça é o Charlton Heston. Há quem diga que o verdadeiro Rodrigo de Bivar não era lá essas coisas, tanto matava mouros quanto conterrâneos, dependendo de quem melhor pagasse, um mercenário da pior qualidade. Mas prefiro imaginá-lo heroico, grandão feito o ator americano, a distribuir golpes com a Collada ou com a Tizona sobre os invasores árabes, para depois, exausto, cair nos braços da maravilhosa Sophia Loren.

            Há um fascínio em andar por terras onde homens combateram, e por aqui, em diferentes épocas, muito se combateu. Mantenho-me na Idade Média, evito Franco e as Brigadas, prefiro ouvir sibilo de flechas e retinir de espadas e cimitarras. A torre ficou para trás; num lado da  estrada há oliveiras retorcidas e aparentemente secas; no outro lado pequenas montanhas com bosques de pinus e o solo pedregoso cor de ferrugem. Seguimos Espanha arriba por aquela vicinal e boa estradinha.

            ‒ Vamos chegar numa aldeia – diz ela.

            ‒ Viu que barato a torre solitária?

            ‒ Vi. Só faltou o D. Quixote.

            ‒ Ele está por aí, é só olhar.

             Ela tem o mapa nas mãos, anota nomes, liga pontos, faz marcações, é ótima navegadora. Entramos na aldeia que parece deserta. Rodamos lentamente sobre uma callejuela estreita entre portas e janelas fechadas. Nem um espanholito sequer para dar informação. A ruazinha desemboca numa praça redonda, com um poço no centro e um cipreste junto ao muro baixo de pedras encaixadas. O verde da árvore faz bonito contraste com o tom amarelado seco de tudo à volta. Próximo ao cipreste, quatro homens idosos jogam cartas. Três usam boinas, e o outro, calvo até metade da cabeça, deixou crescer os remanescentes de sua cabeleira. Os longos fios brancos cobrem-lhe as orelhas e a nuca. Paro o carro ao lado deles e peço informação. Todos nos olham, mas é o senhor calvo quem se levanta e vem em nossa direção. Apoia-se num cajado e caminha com dificuldade. É alto, magro, usa cavanhaque e bigodes com as pontas reviradas para cima. Há curiosidade e certa severidade em seus grandes olhos castanhos. Olho sua fidalga figura: não dava para Charlton Heston, ali estava o outro cavaleiro diante dos meus olhos em pouca carne e muito osso, o próprio D. Quixote, senhor pleno e eterno daqueles domínios. E se não era ele encarnado, poderia ter sido, pois se pelo século XVII andasse, nenhum olhar de estranheza atrairia.

            ‒ Honrubia? – pergunta-se ao ser indagado.

            Pergunto se devo continuar pela rua à minha frente. Não, é melhor dar a volta à praça e pegar o caminho entre aquelas duas casas altas; andará uns dois quilômetros e chegará à carretera, lá haverá indicações. “Posso levá-los até lá”, oferece-se, quixotescamente, o velho senhor. Surpreendo-me com o oferecimento.  Sorrio, agradeço, faço questão de apertar sua mão, e seguimos pelo caminho indicado. Logo a aldeia fica para trás e nos envolve um trecho típico da triste beleza manchega. Bem lá na frente está a estrada principal que nos levará a outra região. Observo o horizonte e sinto uma sensação estranha por deixar aquelas paragens. Há algo que se comunica comigo. Paro o carro, desço, vou até uma oliveira sem folhas e apalpo seus frutos duros e feios.

            ‒ O que foi? – ela pergunta da janela do carro.

            ‒ Nada...

            Então percebo a comunicação com tudo que vejo. Eu conheço esses horizontes, já estive aqui, o déjà vu não é à toa.  Essa viagem foi feita há muitos anos, ainda mais colorida e movimentada, plena de emoções e medos. O mundo do triste fidalgo que vivia recôndito em minha imaginação espraia-se agora diante do meu olhar como um magnífico presente. Eu “via” os campos espanhóis deitado ao lado da minha mãe, que ao ler para mim retirava das páginas do Tesouro da Juventude o sol e a limpidez dessas terras a contrastarem com a escuridão e o frio da noite além das vidraças do meu quarto. É incrível a força das histórias contadas na infância. As imagens criadas na tenra imaginação ficam guardadas, até esquecidas, mas, ao comando de um mecanismo, como se acionassem o interruptor, elas se apresentam com todas as luzes e cores que foram sonhadas. O Quixote ficou lá atrás a jogar cartas, nós entramos na estrada principal e arribamos para o sul. Logo encontraremos o Mediterrâneo que nunca vi, mas é tão azul quanto esse céu manchego, eu sei. Até parece que estou de retorno, e, de certa forma, estou. 

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