Por: CARLOS ROSA MOREIRA
03/11/2024
08:42:57
ES ESTE EL CAMINO PARA HONRUBIA?
‒ Vamos chegar numa aldeia – diz ela.
‒ Viu que barato a torre solitária?
‒ Vi. Só faltou o D. Quixote.
‒ Ele está por aí, é só olhar.
Ela tem o mapa nas mãos, anota nomes, liga pontos, faz marcações, é ótima navegadora. Entramos na aldeia que parece deserta. Rodamos lentamente sobre uma callejuela estreita entre portas e janelas fechadas. Nem um espanholito sequer para dar informação. A ruazinha desemboca numa praça redonda, com um poço no centro e um cipreste junto ao muro baixo de pedras encaixadas. O verde da árvore faz bonito contraste com o tom amarelado seco de tudo à volta. Próximo ao cipreste, quatro homens idosos jogam cartas. Três usam boinas, e o outro, calvo até metade da cabeça, deixou crescer os remanescentes de sua cabeleira. Os longos fios brancos cobrem-lhe as orelhas e a nuca. Paro o carro ao lado deles e peço informação. Todos nos olham, mas é o senhor calvo quem se levanta e vem em nossa direção. Apoia-se num cajado e caminha com dificuldade. É alto, magro, usa cavanhaque e bigodes com as pontas reviradas para cima. Há curiosidade e certa severidade em seus grandes olhos castanhos. Olho sua fidalga figura: não dava para Charlton Heston, ali estava o outro cavaleiro diante dos meus olhos em pouca carne e muito osso, o próprio D. Quixote, senhor pleno e eterno daqueles domínios. E se não era ele encarnado, poderia ter sido, pois se pelo século XVII andasse, nenhum olhar de estranheza atrairia.
‒ Honrubia? – pergunta-se ao ser indagado.
Pergunto se devo continuar pela rua à minha frente. Não, é melhor dar a volta à praça e pegar o caminho entre aquelas duas casas altas; andará uns dois quilômetros e chegará à carretera, lá haverá indicações. “Posso levá-los até lá”, oferece-se, quixotescamente, o velho senhor. Surpreendo-me com o oferecimento. Sorrio, agradeço, faço questão de apertar sua mão, e seguimos pelo caminho indicado. Logo a aldeia fica para trás e nos envolve um trecho típico da triste beleza manchega. Bem lá na frente está a estrada principal que nos levará a outra região. Observo o horizonte e sinto uma sensação estranha por deixar aquelas paragens. Há algo que se comunica comigo. Paro o carro, desço, vou até uma oliveira sem folhas e apalpo seus frutos duros e feios.
‒ O que foi? – ela pergunta da janela do carro.
‒ Nada...
Então percebo a comunicação com tudo que vejo. Eu conheço esses horizontes, já estive aqui, o déjà vu não é à toa. Essa viagem foi feita há muitos anos, ainda mais colorida e movimentada, plena de emoções e medos. O mundo do triste fidalgo que vivia recôndito em minha imaginação espraia-se agora diante do meu olhar como um magnífico presente. Eu “via” os campos espanhóis deitado ao lado da minha mãe, que ao ler para mim retirava das páginas do Tesouro da Juventude o sol e a limpidez dessas terras a contrastarem com a escuridão e o frio da noite além das vidraças do meu quarto. É incrível a força das histórias contadas na infância. As imagens criadas na tenra imaginação ficam guardadas, até esquecidas, mas, ao comando de um mecanismo, como se acionassem o interruptor, elas se apresentam com todas as luzes e cores que foram sonhadas. O Quixote ficou lá atrás a jogar cartas, nós entramos na estrada principal e arribamos para o sul. Logo encontraremos o Mediterrâneo que nunca vi, mas é tão azul quanto esse céu manchego, eu sei. Até parece que estou de retorno, e, de certa forma, estou.