
Por: CARLOS ROSA MOREIRA
05/02/2025
11:08:23
SOM NOTURNO

Notícias de violências apressavam minha marcha. Indesejáveis tampões de ferro denunciavam meus passos que pretendiam imiscuir-se na noite como se a ela pertencessem. Pensei nela, deitada na cama sob a luz morna e macia do abajur.
- Quando telefonei, não acreditei que viesse. Nunca vou
esquecer sua vinda atendendo ao meu chamado louco.
Seus lábios estavam úmidos quando os toquei. Pedi-lhe que
ficasse na cama, preferia sair sozinho, sem despedidas à porta. E guardei sua
imagem de gata banhada de luz. Foi o estrondo de um tampão sob meu pé que
atingiu meus pensamentos e me fez retornar à rua.
Pelo número de quarteirões deixados para trás estava quase
chegando. Eu devia esperar, num determinado ponto, o duvidoso ônibus circular
que me levaria ao aeroporto, ou rezar por um táxi. Próximo a uma esquina
avistei a cobertura de acrílico e o banco de cimento. Sentei-me no banco, com
pouca esperança de que passasse alguma condução. Era junho e o cimento era
frio. Levantei-me, andei pra lá e pra cá. Não de muito longe vieram os sinais
de uma guerra. Primeiro, tiros espaçados: pá... pá...pá. Logo após, tiros
sequenciais: pá pá pá pá pá. E por duas vezes explosões fortes, redondas,
poderosas: bum! bum! Uma ratazana atravessou o asfalto, coleou-se ao meio-fio e
parou sobre um bueiro, bem à minha frente.
- "Que loucura eu fiz, Deus meu!"
Sentei-me no banco sob a cobertura de acrílico. Lembrei-me
do homem queimado vivo que também esperava num banco de parada de ônibus. Então
ouvi o som de um rádio. Voz humana seguida de música caipira. Havia outro
humano ali por perto, talvez solitário e insone.
Houve também um som de rádio, reconfortante som numa noite
há muitos anos em meio à floresta escura. Fatigados e desorientados ouvimos o
rádio e aquilo foi um alento. Depois descobrimos a casinha no breu. Deram-nos
abrigo e café acompanhado de aipim cozido. Em plena mata o rádio nos dizia que "o
Rio de Janeiro tá maneiro, tá macio e é mundial".
O som do rádio vinha de uma porta gradeada de um prédio a
cinco passos à direita.
- Olá, boa noite, desculpe incomodar: o senhor sabe se
passa ônibus a esta hora? Preciso ir para o aeroporto.
Por trás das grades o homem me olhou sem surpresa e
consultou o relógio. Não ofereceu café, mas respondeu com uma certeza que me
aliviou.
- Está vindo por aí.
Agradeci e voltei ao banco de cimento. A preocupação
desaparecera. Aí reparei num cartaz colado ao acrílico. Era o chamado para uma
exposição de Wasth Rodrigues. A reprodução de uma tela do artista ilustrava o
cartaz. Antiga paisagem urbana, rua sem calçamento e casas geminadas com portas
e janelas coloniais. Talvez, o trecho de um subúrbio. E haveria, à noite, uma
luz morna e macia em uma daquelas janelas, que guardaria sussurros e palavras
de amor. "Ela já deve estar dormindo, envolvida apenas pela penumbra do
seu quarto", pensei. A uns cem metros de distância vejo o ônibus dobrar a
esquina e vir na minha direção. Eu nunca mais a veria.