
Por: CARLOS ROSA MOREIRA
26/03/2022
08:38:06
PERENIDADES

É noite. Estou deitado de costas com a cabeça apoiada nas mãos, sobre o cimento liso da varanda no sítio do meu amigo. Lá em cima, “Oraion” cumpre sua eterna jornada. A deusa Ártemis colocou-o lá para jamais fenecer, para brilhar todas as noites aos nossos olhos. Como o Cruzeiro, ele também nos orienta. Uma linha traçada a partir de Saiph e Rigel, duas das quatro estrelas que formam o paralelogramo que é Órion, apontará a direção sul. Quando criança eu enxergava apenas as “Três Marias”. É comum acontecer de sermos atraídos pelas formas mais visíveis e não percebermos o todo que as contém. Em noites estreladas alguém sempre dizia: “Olha as Três Marias!”. Uma vez mostraram-me o todo. Contaram-me a história do Caçador e de como se tornou constelação. Acabaram-se ali as pequenas marias, partes da grande beleza que é Órion.
Independente de mim, de você, dos
ventos, das nuvens, das guerras do mundo, ele fará seu percurso todas as
noites. E se observado como sempre fiz, nos vários momentos da vida, deixará de
ser uma constelação e tornar-se-á algo além dele mesmo. Certa vez, após muitos
anos, visitei a velha casa da minha família. Depois de nós, outras almas a
habitaram. Pedi licença para, a sós, visitar os cômodos. Em um dos quartos,
enfiei o braço no interior de uma prateleira do armário embutido. Tateei a
frincha lá no fundo. Senti o papel na ponta dos dedos. Era a nota de um
cruzeiro colocada há décadas naquela reentrância. Assim que a vi e toquei, a
nota amarfanhada e friável tornou-se o elo entre um passado real e o meu
passado imaginário, entre o sonho e a realidade. Um objeto de muitas épocas. No
instante em que a deixei na frincha, meus pensamentos viviam um momento e
viajavam por diferentes terras e diversos tempos. A luz daquele dia atravessou
as minhas retinas e fixou imagens no meu cérebro; pelo ar vagueavam os cheiros
daquele mundo. Tudo isso, contido na nota, tornou a mim, como os eflúvios de
uma benigna caixa de Pandora.
Neste sítio perdido entre as serras,
meus olhos comidos pelas décadas veem você. Aquele tempo junto ao mar, em que
apreciávamos as estrelas deitados de costas sobre a areia fina. Pareciam tão
próximas que um dia você estendeu o braço imaginando tocá-las com as pontas dos
dedos. E mais próximas pareciam quando lufadas do nordeste tangiam as nuvens,
fazendo-as correr como bandos de animais, deixando as estrelas só para os
nossos olhos. Eu contei a você sobre Órion. Ensinei você a seguir pelas “Três
Marias” e localizar Aldebarã, a estrela do seu signo. Tínhamos uma inocente visão do mundo. Projeções de nossas
pequenas vivências. Víamos tantas coisas a cintilar no escuro dos sonhos, coisas
que existiam em longínquas e misteriosas galáxias.
Você gostou de ouvir o nome
Aldebarã. Repetiu-o. Lembrava-lhe velhas magias, sonhos orientais. Um nome que
se ligava às nossas indagações, aos mistérios da Pedra da Gávea, às
experiências de Castañeda, aos autotransportes do Dalai Lama, às histórias de
conhecidos que contavam de paragens fantásticas. Também viajávamos nas
distâncias sob o brilho das estrelas. Atravessamos portões com as certezas dos
sonhos. Agora esse tempo retorna a mim pela constelação de Órion, suas estrelas
despertam a mais recôndita sensação, que já não existia, mas é inesquecível.
Percebo a existência de todos esses
momentos como vejo as letras nas páginas dos livros. E, ao contrário do
androide Roy Batty, acredito que nada se perderá. Estaremos para sempre nas
luzes de Órion, no grande livro do tempo, cujas páginas imortais guardam todos
os momentos do mundo.