Por: CARLOS ROSA MOREIRA
15/11/2022
09:08:45
PERENIDADES
Independente de mim, de você, dos ventos, das nuvens, das guerras do mundo, ele fará seu percurso todas as noites. E se observado como sempre fiz, nos vários momentos da vida, deixará de ser uma constelação e tornar-se-á algo além dele mesmo. Certa vez, após muitos anos, visitei a velha casa da minha família. Depois de nós, outras almas a habitaram. Pedi licença para, a sós, visitar os cômodos. Em um dos quartos, enfiei o braço no interior de uma prateleira do armário embutido. Tateei a frincha lá no fundo. Senti o papel na ponta dos dedos. Era a nota de um
cruzeiro colocada há décadas naquela reentrância. Assim que a vi e toquei, a nota amarfanhada e friável tornou-se o elo entre um passado real e o meu passado imaginário, entre o sonho e a realidade. Um objeto de muitas épocas. No instante em que a deixei na frincha, meus pensamentos viviam um momento e viajavam por diferentes terras e diversos tempos. A luz daquele dia atravessou as minhas retinas e fixou imagens no meu cérebro; pelo ar vagueavam os cheiros daquele mundo. Tudo isso, contido na nota, tornou a mim, como os eflúvios de uma benigna caixa de Pandora.
Neste sítio perdido entre as serras, meus olhos comidos pelas décadas veem você. Aquele tempo junto ao mar, em que apreciávamos as estrelas deitados de costas sobre a areia fina. Pareciam tão próximas que um dia você estendeu o braço imaginando tocá-las com as pontas dos dedos. E mais próximas pareciam quando lufadas do nordeste tangiam as nuvens, fazendo-as correr como bandos de animais, deixando as estrelas só para os nossos olhos. Eu contei a você sobre Órion. Ensinei você a seguir pelas “Três Marias” e localizar Aldebarã, a estrela do seu signo. Tínhamos uma inocente visão do mundo. Projeções de nossas pequenas vivências. Víamos tantas coisas a cintilar no escuro dos sonhos, coisas que existiam em longínquas e misteriosas galáxias.
Você gostou de ouvir o nome Aldebarã. Repetiu-o. Lembrava-lhe velhas magias, sonhos orientais. Um nome que se ligava às nossas indagações, aos mistérios da Pedra da Gávea, às experiências de Castañeda, aos autotransportes do Dalai Lama, às histórias de conhecidos que contavam de paragens fantásticas. Também viajávamos nas distâncias sob o brilho das estrelas. Atravessamos portões com as certezas dos sonhos. Agora esse tempo retorna a mim pela constelação de Órion, suas estrelas despertam a mais recôndita sensação, que já não existia, mas é inesquecível.
Percebo a existência de todos esses momentos como vejo as letras nas páginas dos livros. E, ao contrário do androide Roy Batty, acredito que nada se perderá. Estaremos para sempre nas luzes de Órion, no grande livro do tempo, cujas páginas imortais guardam todos os momentos do mundo.