Por: CARLOS ROSA MOREIRA
05/11/2023
10:32:31
COISAS PEQUENAS
...Isso nada mais é do que aquele raciocÃnio imediato após ouvirmos algo que nos parece estranho. A resposta vem pronta e parece lógica e correta. Acontece que eu não falava do progresso dos homens, falava deste mundo mesmo, esta terra em que pisamos, este mundo do qual comemos e bebemos desde o mais longÃnquo antepassado da espécie. Este mundo que nos foi entregue com florestas verdes, ar cristalino e águas lÃmpidas. Este mundo piora muito, inexoravelmente. E não pode ser de outro jeito, pois é sobre ele que amamos, nos multiplicamos, sofremos e dele retiramos todas as nossas necessidades. E fui pensar nessa piora do mundo por causa de uma coisa pequena, um pedacinho do mundo que existe diante da minha janela. Nesse pedacinho de mundo havia mata e uma gentil casinha. Na mata existiam duas jaqueiras, um pé de limão-galego, umas moitas de capim-colonião, um bambuzal bonito a se lamentar com o vento, uns pés de aroeira e vários arbustos que se misturavam com uma galharia danada. Além disso, havia os pássaros que brincavam no terreno. Posso garantir que por lá passaram sabiás, bem-te-vis, pombos, rolinhas, sanhaços, pardais, canários-da-terra, biquinhos-de-lacre, periquitos, maritacas e um ou outro pássaro estrangeiro fugido de alguma gaiola, que no terreno buscava pouso e abrigo. Acho que vi um canário-belga, certa vez. Tinha a fauna terrestre também, composta de gambás, ratos e micos, e dos gatos que perambulavam silenciosos como pequenas onças. Notava-se algo de caótico naquela floresta urbana embaixo da minha janela. Um dia foi floresta virgem, arrasada e abandonada pelos homens, transformada em terreno árido. O caos vegetal era a tentativa do mundo de recuperar o que lhe foi tirado, desbastado, cortado e deixado para lá. Então o tempo passou, vieram as chuvas, os insetos, os ventos e os pássaros com as sementes, e a terra vilipendiada recuperou-se. E sem preconceitos, pois ali viviam em harmonia com a flora nativa os estrangeiros limão-galego, o capim-colonião e as “nossas†queridas jaqueiras. Os olhos repousavam no emaranhado verde e se distraÃam com seus habitantes.
Separada do terreno por um muro com
um portão, havia a casinha. Era casinha antiga, do tempo em que ainda não
existiam edifÃcios na rua. Tinha telhas francesas, paredes pintadas de branco,
janelas azuis e uma treliça de madeira na parede dos fundos, sobre a qual subiu
uma hera que ninguém podava. No quintal floresciam hibiscos e rosas e, num
canteiro colado ao muro, hortaliças se misturavam ao mato comum. Um sapotizeiro
fazia a alegria dos passarinhos e dos morcegos. Vez ou outra aparecia uma
senhora de idade para mexer na horta. Um
dia a senhora desapareceu e fecharam a casa. Depois uns homens desembarcaram de
um caminhão, entraram no terreno embaixo da minha janela, derrubaram as
jaqueiras, cortaram o pé de limão-galego, as aroeiras, transformaram o bambuzal
num tufo de cotocos e deixaram a terra nua. Sobre ela construÃram galpões com
cobertura metálica. Fizeram um estacionamento. Acabaram-se os trinados, mas há
o barulho de motor, buzinas e às vezes dispara um alarme gritante, cujo som
estridente permanece nos ouvidos mesmo depois de ter sido desligado. Não tardou
para atacarem a casinha. Cortaram o sapotizeiro, os hibiscos e as rosas,
arrancaram a hera e a treliça e cimentaram o quintal. Onde existiu a horta
fizeram uma cobertura de vidro e metal. A casinha foi pintada de um amarelo
fulgurante. Quando bate o sol, parece que as paredes gritam.
De vez em quando eu chego à janela,
mas olho para o céu. Meus olhos se ressentem da reverberação da luz e do calor
sobre o metal e o cimento. Penso que minha vida também é composta de pequenas
coisas, entre elas olhar pela janela. Recordo o terreno que se foi, levando
consigo suas criaturas. E confabulo num humilde exercÃcio filosófico que é isso
mesmo, o destino do homem é transformar este mundo, e cada geração futura
conhecerá apenas o mundo que lhes dão e achará bom, e se sentirá feliz.