
Por: CARLOS ROSA MOREIRA
02/06/2023
08:21:52
CONCEIÇÃO

As rodas traseiras giravam frenéticas no mesmo lugar, giravam como se girassem no ar. Começou a cair uma chuva fina. Alguns passageiros do ônibus foram ajudar o jipe e outros perambulavam pela estrada, um deles chegou até o nosso carro. O Studebaker era valente, meu pai pensou em enfrentar o lamaçal, mas depois da desventura do jipe permaneceu agarrado ao volante com a cara colada ao vidro, imaginando o que fazer. O passageiro do ônibus puxou assunto com ele:
‒ Se eu fosse você, dava meia-volta,
andava um pouco pra trás e cortava pelo Chico Tobias. Lá num faz essa lama.
Meu pai conversou um pouco com o
homem, depois girou a chave e deu meia- volta.
Nesse dia conheci outro caminho para
Conceição. Tão bonito quanto o principal, bordejando as meias-laranjas transformadas em pastos com chumaços de mata no
cocoruto. Naqueles meus poucos anos achava a viagem para Conceição a mais linda
do mundo. Lembro-me de que minha mãe ligou o rádio do carro, e a canção
combinou com a paisagem: tocava Olhando
para o céu.
Eu dormia no quarto da frente da
casa dos meus avós paternos, numa cama junto à janela que dava direto para a
calçada. Na manhã seguinte à nossa chegada, a primeira manhã das grandes férias
de verão, os trinados de advertência dos bem-te-vis me acordaram. Até hoje
tenho na memória os chamados matinais dos bem-te-vis pousados no bambuzal do
morro logo acima do prédio da Lyra. A
chuva tinha ido embora e o céu de Macabu despejava seu azul sem igual sobre o
verde, e o verde brilhava e aconchegava Conceição, parecia protegê-la,
aninhando-a num berço colorido e alegre.
Meu avô já havia saído para o
trabalho. Durante décadas fez e refez o curto trajeto de sua casa à Farmácia
Moreira. Eu tomei café com leite acompanhado pelo pão e pelas roscas salgadas
da padaria do Itamar, e saí. Do outro lado da rua, no quintal da casa dos meus bisavós maternos, o jambeiro
mostrava tentadores pontos avermelhados; e debruçado sobre o muro, o pé de abiu
espalhava seus galhos com frutos polpudos precocemente amarelos. Minha bisavó
Mariana me acenou da janela; quase ao mesmo tempo meu bisavô Etelvino chegava a
cavalo. Às vezes ele me dava umas pratas e eu ia direto à venda do Jonas comprar
bolas de gude. Eu guardava as bolebas num saquinho de filó. Tinha uns olhinhos lisos, brilhantes e sem jaças,
além de várias gudes comuns. Somava isso tudo às sementes negras do fruto da
saboneteira que havia bem na esquina da praça, em frente ao armazém do Laerte.
Aquelas bolinhas negras não valiam tanto quanto as gudes, mas eram aceitas no
jogo.
Em torno da praça e nas ruas
adjacentes, da ponte de madeira na entrada da cidade até o caminho para Vila
Nova, e ao longo da linha do trem da estação à Usina, as casas se avizinhavam,
irmanavam-se geminadas ou se separavam por breves quintais ou corredores para
logo em seguida se unirem outra vez parede com parede, formando um todo
harmônico, no qual a altivez de um ou outro sobrado ou a largueza de uma
chácara arborizada dava o toque necessário, quebrando a uniformidade sem
desfazer a harmonia. Eram fachadas singelas, limpas, em tons pastel, sem
ostentação nem riqueza; fachadas agradáveis, de casas onde viviam famílias que
se conheciam, se entrecruzavam, se cumprimentavam e conviviam, criando o dia a
dia com seus dramas, seus amores e todos os sentimentos que perpassam o coração
humano, seja aqui, seja em qualquer cidade do mundo. Quem entrasse em Conceição
e contornasse a praça encontraria a igreja e a estação de trem. E poderia ter a
impressão de que todo aquele casario ali se iniciava, ou terminava. A igreja e
a estação... De certa forma, o alfa e o ômega. A simplicidade das casas formava
as ruas de Macabu. Tornava-as aprazíveis, pois em nada discordavam do seu tempo
e do seu meio. Tenho essa Macabu em
minhas lembranças desprovidas de nostalgia, porém saudosas da estética modesta,
mas plena de personalidade.
Conceição de Macabu é a terra do meu
pai e dos meus avós. Antigamente, todo mundo se conhecia, e o meu pai, filho de
Melita e Helvécio Moreira, era o Zé Carlos
de Melita; eu era o menino de Zé Carlos de Melita. Era
assim, dessa forma, que as pessoas costumavam falar. Toda a infância do meu pai
foi passada
‒ Gancho bom é de goiabeira, mas o
de leiteira é ainda melhor ‒ ensinava meu pai. E ia comigo procurar leiteira no
barranco do Morro da Mijada. Aprendi com ele a fazer bolinhas de tabatinga e
secá-las ao sol, tornando-as excelentes petardos. Quase todo menino tinha uma
atiradeira pendurada ao pescoço. Eram tempos em que não se conhecia a palavra
ecologia. As histórias de caçadas povoavam as conversas e a nossa tenra
imaginação.
Lembro-me das manhãs dos verões de
Conceição... O verde resplandecia ao sol e o capim-gordura exalava seu perfume.
A passarinhada enchia o ar de voo e de canto. Os marimbondos, pequenas e
amedrontadoras harpias, zumbiam por todas as direções. Meus companheiros e eu
subíamos o morro do Coronel ali pelo terreno da farmácia do Evaristo,
passávamos pela trilha por trás da casa de D.Maria e rompíamos até a Bocaina,
para lá da caixa d’água. Eu tinha um medo de cobra que me pelava, mas os
meninos de Conceição pareciam temer mais os lagartos. Acreditavam que se um
lagarto mordesse alguém e bebesse água antes da pessoa mordida, essa pessoa
morreria; mas se a pessoa bebesse água antes, seria o lagarto a ir desta para
melhor! Eu desconfiava dessa história, mas preferia passar longe dos lagartos.
Havia um trecho de capim baixo que beirava o morro por trás da farmácia do Evaristo
e seguia paralelo à estrada para Vila Nova, depois afilava entre a estrada e o
morro e terminava em pastos e sítios. Em algum ponto daquele trecho morava um
homem que curtia couros. Ele estendia couros de boi em varas e os colocava para
secar naquela pequena planície de capim baixo. Na minha imaginação infantil,
aqueles couros que nos surpreendiam em meio às nossas explorações se pareciam
com as imagens das aldeias indígenas dos filmes e dos gibis do velho oeste
americano. Naquela época, os filmes de cowboys
e índios e as aventuras de Tarzan enchiam de espectadores o cinema de
Conceição. Frequentei muito o velho cinema com cadeiras de madeira, em frente à
linha do trem. Cheguei a conhecer o teatro, mas recordo-me vagamente de uma
peça ou evento.
Em frente à casa dos meus avós paternos,
Helvécio e Melita Moreira, ficava a residência do Coronel Etelvino e de D.
Mariana Gomes, meus bisavós, avós da minha mãe. A casa perdeu o quintal, mas
ainda está lá, espremida entre muros com aquele morrão bonito atrás, “o morro do
coronel”. É uma das poucas residências antigas conservadas, testemunha da
arquitetura simples e suave que enfeitava as ruas de Conceição. Nos fins das
quentes tardes de verão, meus bisavós se sentavam em cadeiras de vime na
varanda para “tomar a fresca” e conversar. Um ou outro passante parava, dava
dois dedos de prosa e seguia. Eu era criança e criança naquele tempo não
participava de conversa de adulto, mas ficava em volta, prestando atenção, e
até hoje aquelas queridas vozes, aqueles assuntos tão familiares, tão de
Conceição, fazem parte das minhas lembranças.
O cair da tarde vinha repleto de
perfumes. Perfume de banho, perfume de comida temperada. As famílias cumpriam
quase o mesmo ritual diário e o cair da tarde era hora do banho e do jantar.
Quando a noite ia alta, as ruas exalavam seu autêntico perfume: fragrâncias das
matas, cheiro de excremento fresco de bois e cavalos misturado à terra úmida
pelo orvalho, aroma de couro e das velhas madeiras das casas de Conceição. Em
torno das lâmpadas amareladas dos postes esvoaçavam milhares de insetos,
morcegos davam rasantes e um ou outro cão passava trotando. A gente ouvia pio
de coruja e o silêncio se deitava sobre a cidade, às vezes entrecortado por um
latido distante.
Tenho alguma lembrança do trem de
passageiros, vaga recordação de uma viagem. Eu gostava de andar na linha do
trem, seguir sobre ela até a usina. De lá olhava em torno aqueles montes,
procurando, talvez, os olhares dos meus antepassados. Aquelas terras foram do
meu trisavô, Antônio Manoel Tavares, que doou parte delas a Victor Sence para
construir a usina que traria progresso a Conceição. Antonio Manoel Tavares e
sua esposa, minha trisavó Rosa Valentim Tavares, pais da minha bisa Mariana, foram
os primeiros a libertar escravos na região. Eram senhores bons, donos da
Fazenda Santa Rosa, imensa quantidade de terra que sumia lá para as bandas do
Norte.
Havia as boiadas que atravessavam a
cidade, tangidas pelos vaqueiros armados com o garruchão de ponta de ferro,
enfeitado com um chumaço de pelos dos animais. Alguns vaqueiros apoiavam o cabo
do garruchão no estribo e o seguravam feito uma lança, e eu achava aquilo
bonito de se ver. Às vezes, algumas reses rebeldes se desgarravam e entravam
por algum portão aberto, provocando gritos, correria e manobras audaciosas dos
vaqueiros sobre seus cavalos. Era um espetáculo a passagem das boiadas. Todos
os dias os carros de boi carregados de cana também atravessavam a cidade.
Vinham naquela modorra, vagarosos e rangedores. Carro de boi que não rangesse
não era carro de boi. Vinham lá da estrada, passavam em frente à entrada da
Bocaina, pelo pequeno posto de gasolina e entravam na cidade pela ponte de
madeira sobre o riozinho de águas cristalinas. Brincávamos muito no rio.
Descíamos junto à ponte e andávamos pelas águas rasas passando por trás de
quintais até a beneficiadora de arroz. Fazíamos represas com tabatinga e
pegávamos piabas, carás e cascudos com a mão. Mas lá vinha o carro de boi cheio
de cana entrando na cidade. Passava em frente à barbearia do Santo, à casa de
seu Moreira e D. Anna Moreira, à padaria do Félix; vinha tocando em frente,
parecendo sem muita vontade de ir. Passava pela loja do João Gaspar, pela do
Noel, pela oficina de sapateiro do Boneco, pela casa de Gabriel, pelo templo
protestante, pelo posto de saúde e, às vezes, dava uma paradinha para descansar
à sombra de uma árvore, por ali mesmo, diante da casa de uma família árabe. Mal
parava, continuava, passava diante do armazém do Laerte e seguia na direção da
estrada de Vila Nova, deixando para trás as casas do Coronel e de Sinhá
Mariana, o armazém do Jonas, a casa de seu Helvécio e D.Melita; de D.Zinha
Picanço e da professora Arinda, do pessoal “da luz”: Antonelli e D.Lalaia, seu
Mamede e família; a casa de D.Maria e depois a farmácia do Evaristo. Lá vai o
carro de boi... Vejo-o ainda hoje, sumindo na estrada... Não havia garoto que
não corresse atrás de carro de boi para arrancar talos da boa cana de
Conceição, descascada com os dentes e chupada ali mesmo, nas sombras das
árvores da praça.
No meio daquelas tardes quentes
havia a chuva. Começava com uma roncação, e os mais velhos diziam que São Pedro
estava arrumando os móveis. Eu já não acreditava nisso, mas fazia a imagem de
São Pedro com longa barba branca e de camisolão, andando para lá e para cá lá
no céu. O céu escurecia. Chegava então o cheiro bom de terra molhada. Lugar
nenhum do mundo tinha aquele perfume antes da chuva, só Conceição. Aí caia um
pingo grosso de matar formiga, depois outro e outro e, de repente, uma cortina
translúcida e refrescante desabava sobre os telhados. Cascatas pardacentas
desciam dos morros e pequenos riachos corriam junto ao meio-fio, mas, aos
poucos, aquela força amainava, o céu parava de roncar e ainda se abria para o
azul de resto de tarde. O ar se tornava fresco, as cigarras cantavam e pessoas
saíam às ruas. Teve um dia em que a chuvada pegou meus amigos e eu bem no meio
da praça. Encharcados e felizes como só as crianças sabem ser num banho de
chuva, mergulhamos no velho laguinho. Era um laguinho quadrangular de bordas
cimentadas e pintadas de branco, cheio de vitórias-régias na superfície de suas
águas esverdeadas.
Existiam duas palavras que eu só
ouvia em Conceição: cabrunco e catirina. Cabrunco era xingamento ou expressão
de desabafo ou aborrecimento; catirina era o que eu chamava de palhaço, palhaço
de carnaval. E eram bons os carnavais de Macabu...
Lá
em casa tem um bigorrilho, bigorrilho fazia mingau...
Vamos
pro mato caçar, companheiro, pro mato caçar, oi!
Sá Mariquinha o negócio é descer, Sá Mariquinha o negócio é descer!
Eu era criança, carnaval para mim
era observar a folia dos mais velhos e levar corrida de catirina. Minha mãe,
Therezinha, filha do farmacêutico mineiro Jair Rosa e de Cilá Gomes, a filha
mais velha do coronel Etelvino e de D. Mariana, conhecia todo mundo e se
esbaldava no carnaval. Lembro-me do carnaval de 63... ou terá sido 62? Foi num
desses da primeira metade dos sessenta. As catirinas andavam pelas ruas debaixo
do sol quente, e nós, as crianças, mexíamos com elas. E tome de levar carreira
de catirina! Minha mãe, umas primas e amigos organizaram um bloco, cuja fantasia
era de “carrasco”. A farra do bloco foi no cruzamento em frente ao Hotel do
Siqueira. Bloco, catirinas, crianças e foliões se juntaram ali numa pulação
animada. Havia também o carnaval no clube, a velha sede desativada. Tinha baile
e desfile de fantasia com julgamento, nota e premiação. Naquela longínqua tarde
de um carnaval macabuense, o vencedor foi um rapaz de nome Sérgio, cuja bonita
fantasia representava um príncipe russo. Lembro-me do Sérgio desfilando na
passarela do clube: digno, elegante, aplaudido.
Conceição...
A cidade dos meus avós cresce, suas
estradas e ruas são asfaltadas, já não se atolam os carros. E, a exemplo da
maioria das cidades brasileiras, vai se desprendendo de seu passado. Já não
tenho parentes
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