
Por: CARLOS ROSA MOREIRA
19/08/2023
10:00:38
IMORTALIDADE

Foi num daqueles apartamentos, ao rés do chão, que o pai fez a festa
para a filha. Éramos todos adolescentes e a filha completava quinze anos. O
apartamento iluminado deu vida à fachada do modesto prédio e aquele trecho de
rua ficou repleto de jovens e de música. Havia dois garçons que se espremiam
pelos estreitos cômodos e corredores atulhados de moças e rapazes. Carregavam
bandejas com salgadinhos e bebidas, às vezes iam até a calçada servir os
convidados que preferiam ficar a salvo do tumulto do apartamento.
A filha rodava entre amigas e possíveis
pretendentes. Em seu rosto havia um sorriso enorme e na voz a excitação da
menina princesa por um dia. Era bonita, mas não tinha a beleza padronizada
exigida pelo nosso inseguro e cruel universo adolescente. Lembro-me dos seus
pais: a mãe alegre, atarefada, fazendo tudo dar certo; e o pai feliz. Recordo
que comentamos, com ironia, sobre a felicidade incontida daquele pai:
─ O coroa tá alegre...
Era um pai baixinho, calvo, frágil e
parecia já ser idoso naquela época. Ia
de um cômodo a outro, conversava, dava atenção a todos. Não era rico e imagino
que foi um sacrifício dar aquela festa. Sacrifício recompensado no momento em
que dançou a valsa com a filha na apertada sala do apartamento. Tenho certeza
de que, naquele instante, ele valsava num enorme salão e rodava orgulhoso entre
os convidados que admiravam sua bela princesa. Vieram palmas e, emocionado, o
pai cedeu a vez ao pedido titubeante de um possível príncipe consorte. Então,
com um sorriso nos lábios, o pai se afastou do mundo dos jovens. Sem deixar, um
só instante, de admirar a felicidade no rosto da filha que ele tornara princesa
naquela noite. O presente estava dado, a filha era feliz, uma etapa terminava.
Hoje eu passei em frente àquele prédio. De
vez em quando passo por ali. Mas hoje correu uma brisa, houve aromas de Vitess
e Lancaster, uns tilintares de taças e músicas antigas. Vi-me naquela noite de
festa com os meus amigos e revi nossos adolescentes olhares para as meninas de
farfalhantes vestidos. Sei que a princesa se transformou numa senhora de olhar
amargo e que seu pai partiu alguns anos após a festa. Agora também sou pai e a
lembrança daquele senhor me deixou em uma surpreendente comunhão com ele. Como
se os seus olhares e os seus gestos naquela noite, há mais de quarenta anos,
chegasse agora trazendo uma pequena ternura ao meu dia. Não o vejo mais velho;
se estivesse aqui poderíamos conversar uma conversa de pais, assuntos
despretensiosos como esses que conversamos em filas de bancos, talvez falar
sobre o mundo perigoso no qual criamos nossos filhos. Então penso que esse
homem ainda existe, pois há alguém que pensa nele e se emociona com algo que
fez há muitos anos. A vida segue, termina, mas nossos gestos continuam. Pode
ser que fiquem para sempre em algum lugar ou na lembrança de um obscuro irmão
num canto qualquer do mundo.
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