
Por: CARLOS ROSA MOREIRA
12/12/2022
17:05:40
ESSAS PLAGAS

...Na manhã seguinte teria a cabeça destroçada e se tornaria o motivo de um grande festim naquela taba dos “Gatos do Mato”. Seu olhar atravessava a Guanabara e perdia-se no relevo sinuoso da “Água Escondida”. Lá do outro lado sua dadivosa cunhã talvez se banhasse nas águas límpidas do Acara u. Lembrava o fascínio dela por seus olhos azuis, pousando neles as íris tão negras. A expressão ingênua dela, às vezes melancólica, quase sempre altiva, tornava-se radiante quando lhe afagava os cabelos loiros e a barba ruiva:
- Mair ajurú... – assim o chamava, e sorria, sorria feito criança.
Essa
historinha é uma ficção, mas não é impossível que tenha acontecido. Muitos
soldados da France Antarctique não
resistiram aos encantos das moças tupinambás e debandaram das fileiras de
Villegagnon. Niterói era tupinambá, ou tamoia, nação aliada dos franceses. Os
tupinambás odiavam os portugueses e seus amigos maracajás ou “gatos do mato”,
tribo do nosso Arariboia. Fico a imaginar a sonoridade da pronúncia francesa da
palavra tupi que até hoje nomeia essas enseadas e reentrâncias de mar: Niterói.
O t na pontinha da língua, o r gutural macio, quase um sopro a fundir-se com o
uá das últimas vogais. Há muitos anos, numa das minhas incursões de mergulho e
pesca na Ilha Grande, conheci um francês que viajava pelo mundo. Disse-lhe que
conhecesse minha cidade, Niterói, pois seus antepassados andaram por lá e a
quiseram a todo custo para si. Ele conhecia a história. Pronunciou “Niterói” e
repetiu com sua pronúncia francesa.
-
Tendre... – disse sorrindo.
Sim,
minha cidade é terna. Mesmo vilipendiada, como tudo nesse Rio de Janeiro.
Icaraí,
Acara u... “Rio das águas santas” ou “Rio sagrado” para uns; “Rio dos carás”
para outros. Há uma discordância sobre o topônimo tupi que nomeia meu bairro.
Em suas águas se banhava a cunhã do jovem francês Jean de Latour. Os tupinambás
eram os senhores dessas plagas. Areias brancas com vegetação de restinga, bem
semelhante à que ainda vemos em trechos da estrada entre Cabo Frio e Arraial do
Cabo. As salsas-da-praia atravessavam a areia em compridos cordões quase até à
arrebentação. À medida que se deixava para trás a praia, mais espinhosa ficava
a mata. Mas aquele meio agreste era generoso para com os tupinambás. Naquela
floresta coletavam pitangas, cajus, maracujás, ingás, os camboins e riquezas
vegetais desconhecidas que desapareceram com eles. A caça e a pesca eram
abundantes. Pela restinga agressiva corria o Acara u. Curso de ricas águas
cristalinas descendo das bandas do Cubango para desembocar nas águas escondidas
da Guanabara. Era ele o manancial de vida dos tupinambás.
Posso
dizer que conheci um pouquinho o Acara u. Conheci-o em seus estertores,
golpeado de morte pelos civilizados. A casa da minha família ficava no número
411 da Ary Parreiras, entre Estácio de Sá e Barros, hoje Roberto Silveira e
Min. Otávio Kelly. Aquele trecho pertence ao pequeno bairro Jardim Icaraí, o
autêntico. Um reduto entre Icaraí, Santa Rosa e Vital Brazil. Quem passa pela
Silvestre Rocha, no pedaço entre os dois túneis, vê o antigo prédio “Jardim
Icaraí”, no coração do pequeno bairro. A Ary Parreiras não era asfaltada
naquele trecho em que morávamos, o mato crescia junto à calçada e pelas bordas
do Rio Icaraí, já chamado de “valão”. Havia dias em que chegava um caminhão com
prisioneiros controlados por policiais. Os presos desciam da carroceria armados
com enxadas para capinar e limpar o mato crescido. Na época das grandes chuvas
o Icaraí tornava-se volumoso e rápido, cheio de si em seus últimos suspiros de
manancial de vida. Rapazes em boias de câmaras de ar desciam o rio desde Santa Rosa.
Mataram-no.
E o tempo passou. Acara u, Icaraí... Nem sagrado, nem carás. Restou a
demonstração do que somos capazes de fazer, e esquecer. E não se importar.
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