
Por: CARLOS ROSA MOREIRA
04/03/2023
07:14:09
ES ESTE EL CAMINO PARA HONRUBIA?

...Uma velha torre nos ermos daqueles horizontes lembrava que estávamos
nos domínios de dois cavaleiros: o Cid e o Quixote. El Cid ou “O Senhor”, cortou cabeças, desventrou e com sua Tizona transformou em vermelho o ocre
daquela terra. Imagino como seria a figura real de Rodrigo de Bivar, o El Cid. Fiquei um pouco decepcionado ao
ver as armaduras nos museus e castelos de Madri, Toledo e Segóvia. Com meus setenta
e cinco quilos distribuídos em um modesto um metro e setenta e quatro, pareço
um homem grande numa foto entre duas armaduras de guerreiros daqueles tempos.
“Pequeños”, disse um turista ao meu lado. Mas a imagem que tenho de El Cid não é produto da minha imaginação
nem das estátuas das praças espanholas, o El
Cid que está na minha cabeça é o Charlton Heston. Há quem diga que o
verdadeiro Rodrigo de Bivar não era lá essas coisas, tanto matava mouros quanto
conterrâneos, dependendo de quem melhor pagasse, um mercenário da pior
qualidade. Mas prefiro imaginá-lo heroico, grandão feito o ator americano, a distribuir
golpes com a Collada ou com a Tizona sobre os invasores árabes, para
depois, exausto, cair nos braços da maravilhosa Sophia Loren.
Há um fascínio em andar por terras
onde homens combateram, e por aqui, em diferentes épocas, muito se combateu.
Mantenho-me na Idade Média, evito Franco e as Brigadas, prefiro ouvir sibilo de
flechas e retinir de espadas e cimitarras. A torre ficou para trás; num lado da
estrada há oliveiras retorcidas e aparentemente secas; no outro lado pequenas montanhas
com bosques de pinus e o solo
pedregoso cor de ferrugem. Seguimos Espanha arriba por aquela vicinal e boa
estradinha.
‒ Vamos chegar numa aldeia – diz ela.
‒ Viu que barato a torre solitária?
‒ Vi. Só faltou o D. Quixote.
‒ Ele está por aí, é só olhar.
Ela tem o mapa nas mãos, anota nomes, liga
pontos, faz marcações, é ótima navegadora. Entramos na aldeia que parece
deserta. Rodamos lentamente sobre uma callejuela
estreita entre portas e janelas fechadas. Nem um espanholito sequer para dar
informação. A ruazinha desemboca numa praça redonda, com um poço no centro e um
cipreste junto ao muro baixo de pedras encaixadas. O verde da árvore faz bonito
contraste com o tom amarelado seco de tudo à volta. Próximo ao cipreste, quatro
homens idosos jogam cartas. Três usam boinas, e o outro, calvo até metade da
cabeça, deixou crescer os remanescentes de sua cabeleira. Os longos fios
brancos cobrem-lhe as orelhas e a nuca. Paro o carro ao lado deles e peço
informação. Todos nos olham, mas é o senhor calvo quem se levanta e vem em
nossa direção. Apoia-se num cajado e caminha com dificuldade. É alto, magro, usa
cavanhaque e bigodes com as pontas reviradas para cima. Há curiosidade e certa
severidade em seus grandes olhos castanhos. Olho sua fidalga figura: não dava
para Charlton Heston, ali estava o outro cavaleiro diante dos meus olhos em
pouca carne e muito osso, o próprio D. Quixote, senhor pleno e eterno daqueles
domínios. E se não era ele encarnado, poderia ter sido, pois se pelo século
XVII andasse, nenhum olhar de estranheza atrairia.
‒ Honrubia? – pergunta-se ao ser
indagado.
Pergunto se devo continuar pela rua
à minha frente. Não, é melhor dar a volta à praça e pegar o caminho entre
aquelas duas casas altas; andará uns dois quilômetros e chegará à carretera, lá haverá indicações. “Posso
levá-los até lá”, oferece-se, quixotescamente, o velho senhor. Surpreendo-me
com o oferecimento. Sorrio, agradeço,
faço questão de apertar sua mão, e seguimos pelo caminho indicado. Logo a
aldeia fica para trás e nos envolve um trecho típico da triste beleza manchega.
Bem lá na frente está a estrada principal que nos levará a outra região.
Observo o horizonte e sinto uma sensação estranha por deixar aquelas paragens.
Há algo que se comunica comigo. Paro o carro, desço, vou até uma oliveira sem
folhas e apalpo seus frutos duros e feios.
‒ O que foi? – ela pergunta da
janela do carro.
‒ Nada...
Então percebo a comunicação com tudo
que vejo. Eu conheço esses horizontes, já estive aqui, o déjà vu não é à toa. Essa
viagem foi feita há muitos anos, ainda mais colorida e movimentada, plena de
emoções e medos. O mundo do triste fidalgo que vivia recôndito em minha
imaginação espraia-se agora diante do meu olhar como um magnífico presente. Eu
“via” os campos espanhóis deitado ao lado da minha mãe, que ao ler para mim retirava
das páginas do Tesouro da Juventude o
sol e a limpidez dessas terras a contrastarem com a escuridão e o frio da noite
além das vidraças do meu quarto. É incrível a força das histórias contadas na
infância. As imagens criadas na tenra imaginação ficam guardadas, até
esquecidas, mas, ao comando de um mecanismo, como se acionassem o interruptor,
elas se apresentam com todas as luzes e cores que foram sonhadas. O Quixote ficou
lá atrás a jogar cartas, nós entramos na estrada principal e arribamos para o
sul. Logo encontraremos o Mediterrâneo que nunca vi, mas é tão azul quanto esse
céu manchego, eu sei. Até parece que estou de retorno, e, de certa forma,
estou.
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