
Por: CARLOS ROSA MOREIRA
22/04/2022
08:07:36
CAMINHOS INVISÍVEIS

...‒ Quero caminhar! Me mostre a cidade – diz você, que não sabe, mas trilha meus caminhos invisíveis.
As cidades são cheias desses
caminhos traçados e oferecidos nos mapas pela História, pela Literatura, pelo
cinema, pelas artes. Dessa vez escolhi o cinema e vou trilhando rumos de filmes
e cenas que me chegam à cabeça aleatoriamente. Pegamos o metrô e descemos em
Notre-Dame. Queria massagear seus pés no square
Jean XXIII, mas ao chegar lá me esqueço disso. Esqueço-me ainda que é inverno e
me surpreendo com as ausências do verde e das flores, que dão tanta vida àquele
recanto em outras estações. As árvores estão quase nuas e começa um chuvisco.
Paris drizzels. Mas conto a você a
história de Peter Coyote e Emmanuelle Seigner e acho que algo doce passa em seu
pensamento, pois me beija e afaga. O olhar ainda é anoukaiméesiano, não de
fastio ou indiferença, mas da melancolia que a persegue.
O chuvisco cessou e caminhar é a
melhor coisa a fazer por aqui, e você gosta disso. Seguimos ao longo do Sena,
repisando pegadas.
‒ Foi aqui, bem aqui – disse-lhe eu.
‒ Aqui o quê ?
‒ Foi aqui que o inspetor Javert se
suicidou arrojando-se ao Sena numa noite da década de 1950.
Conto-lhe a saga de Jean Valjean
como se fosse testemunha do drama, enfatizando o “mergulho” de Robert Newton/Javert
no Sena. Ao retornarmos, mostro-lhe a Alexandre III, que penso ser a ponte mais
charmosa do mundo. A ponte resplende ao brilho intenso e oblíquo do sol de
inverno que resolveu reaparecer. Você tem óculos escuros, mas eu mal consigo
abrir os olhos, como sempre aconteceu comigo nos verões sobre as areias alvas
de Cabo Frio e Arraial. Há tanta luz que parece espantar sua melancolia. Os
raios fúlgidos como os raios do sol brasileiro reverberam na arquitetura do
Grand Palais e do Petit Palais, e eu noto um sorriso de fascinação em seus
lábios. Você quer uma foto na ponte, naquele vão, com a torre lá atrás. Tira a écharpe e exibe ao sol parisiense seu
belo pescoço. A visão do seu pescoço prende meus olhos e meu pensamento: hesito
com a máquina fotográfica nas mãos. Você se impacienta e a fotografo de
diversos ângulos. Passeamos pela ponte e me lembro de que em algum ponto por
aqui o jovem e emotivo resistente Jean-Pierre Léaud não conseguiu matar o
soldado alemão, tão jovem quanto ele, e ainda acabou por fazer uma foto a
pedido do tedesco. Andamos até Invalides, mas o sol parte e começa um ventinho
fresco que não tarda a mostrar sua insídia. A chuva fina nos levou de volta ao
hotel. Deixo-a no quarto e saio para comprar o seu desejo no momento: chocolate.
Está tudo fechado, mas o concierge
diz que pode haver algo funcionando na rue
Lauriston. Percorro vários quarteirões daquela rua estreita. Não há
vivalma. Acho-me, de repente, diante do número 93. Ali existiu o quartel da
Gestapo em Paris, um centro de tortura e morte. Além dos alemães, atuavam lá
colaboradores franceses, todos muito humanos, pois é exclusivamente humana a
capacidade de supliciar seu semelhante. Fico parado em frente ao prédio sóbrio
e sombrio. A quietude da rue Lauriston
atiça minha imaginação, mas não quero esses pensamentos e me afasto do prédio
que foi um dia a sucursal do inferno. Caminho mais e encontro o mercadinho de
um árabe. Compro o chocolate para agradá-la e essa função me aquece nesse
inverno.