Por: AYRTON DIAS

14/02/2024

07:46:12

O TREM DO PASSADO - UMA HISTÓRIA ESQUECIDA

O trem deixou de circular em Nova Friburgo em 15 de julho de 1964
O TREM DO PASSADO - UMA HISTÓRIA ESQUECIDA
Esse meio de transporte marcou para sempre as gerações que conviveram com ele. "Não era simplesmente um meio de transporte. O trem pontuava a vida cotidiana dos friburguenses, a exemplo do 'vassourinha', o último trem que trafegava pelo centro de Nova Friburgo em direção a Sumidouro. Levou essa alcunha, pois varria as moças da rua quando passava obrigando-as a se recolherem em suas residências já que a moralidade não permitia que mulheres decentes ficassem pela rua." afirma Janaí­na Botelho.

Decisões de gabinete podem ser extremamente prejudiciais ao país. Existem vários registros de opções governamentais equivocadas que prejudicaram os rumos da nação. O sucateamento da malha ferroviáriaa durante a gestão do ex-presidente Juscelino Kubitschek foi um erro histórico! Na época, atendendo aos interesses da poderosa indústria automobilística, o governo federal priorizou a opção pelo modal rodoviária em detrimento do transporte ferroviário, determinando que fossem extintas linhas e ramais em um processo totalmente contrário ao adotado por inúmeros países desenvolvidos. Foi o fim de um importante perí­odo para a economia brasileira onde o trem protagonizava uma era do pleno progresso e desenvolvimento.

A antiga estação de Cachoeiras de Macacu

Muitas vezes não percebemos, mas constantemente nos deparamos com resquícios de parte da história e não nos damos conta disso. São elementos, arquitetônicos ou não que em muitos casos, mesmo não tendo sido preservados, resistiram ao tempo perpetuando uma era. A passagem do trem transformou a antiga Vila de Nova Friburgo em um municí­pio, gerando progresso e desenvolvimento.

Conforme ata de janeiro de 1870 da câmara municipal, "... a estrada de ferro facilitará aos ricos que quiserem se distrair e aos doentes que se quiserem curar ou convalescer sob este clima doce, suave e ameno, cuja reputação é tradicional, um rápido e cômodo transporte. A serra da Boa Vista deixará de ser o espantalho dos habitantes de aquém e de além Nova Friburgo...". Segundo a historiadora Maria Janaína Botelho, autora do livro "O Cotidiano de Nova Friburgo no final do Século XIX - Práticas e Representação Social", o trem interferia no cotidiano e na sociabilidade das pessoas da cidade. Para ela, a linha férrea desencadeou um grande desenvolvimento: "O fato de Nova Friburgo possuir uma linha férrea, associado a outros fatores, foi um fator determinante para o investimento de empresários alemães em indústrias têxteis e de artefatos de couro no município."

O trem subindo a serra (Foto: Osmar Castro)

Para Janaí­na, não há dúvidas em relação ao grande impacto na economia mundial gerado pelos veí­culos a vapor, pois "o trem foi uma das grandes revoluções técnicas do século XIX que acelerou o desenvolvimento e progresso e serviu para "diminuir as distâncias e otimizar resultados. Em suas pesquisas ela encontrou registros que apontam que uma das primeiras ferrovias brasileiras foi a Estrada de Ferro Cantagalo, inaugurada em abril de 1860, que inicialmente fazia a ligação entre Porto das Caixas (região de Itaboraí­) e a Raiz da Serra (Cachoeiras de Macacu). A construção dessa linha férrea, que tinha por objetivo o escoamento da produção de café, foi uma iniciativa de Antônio Clemente Pinto - o Barão de Nova Friburgo-, um importante proprietário rural luso-brasileiro que enriqueceu comercializando escravos. Ele era dono de várias fazendas de produção de café nas regiões de Nova Friburgo, Cantagalo e São Fidélis e investiu na linha férrea objetivando abreviar a distância entre a região de Cantagalo e o porto do Rio de Janeiro. Após sua morte, seus filhos prosseguiram com o projeto ferroviário, ligando Porto das Caixas até Niterói e depois até Cantagalo, passando por Nova Friburgo. Esse trecho foi inaugurado em 18 de dezembro de 1873, contando com a presença do Imperador D. Pedro II. Em 1877, a proví­ncia do Rio de Janeiro encampou a Estrada de Ferro Cantagalo e em 1887, a empresa foi vendida a  Companhia Estrada de Ferro Leopoldina. Onze anos depois passou a ser de capital inglês, sendo denominada The Leopoldina Railway Company Limited."


UMA VIAGEM NO TEMPO

Originalmente, circulavam pela Estrada de Ferro Cantagalo apenas trens de carga, mas em função da grande demanda de pessoas que fugiam das epidemias de febre amarela durante o verão no Rio de Janeiro, foi também disponibilizado o trem de “passeio”. O memorialista Mário Saraiva, em um dos seus artigos publicados no Jornal “A Voz da Serra, apresentou o seguinte relato: “O trem de passeio saía no sábado à tarde da Estação de Maruí, em Niterói, e regressava na manhã de segunda-feira. Era o trem dos veranistas. Como durante algum tempo os lugares não eram fixados, havia muito sarilho, e a confusão era frequente. Alguns marcavam lugares para os retardatários, mas passageiros indignados com a ‘marcação’ removiam os ‘embrulhinhos’e sentavam no local. Os retardatários ao chegarem reclamavam e muitas vezes facas e revólver eram apontados durante a discussão. Logo que o trem partia, os viajantes envergavam o guarda-pó em razão da poeira que vinha do leito da estrada de chão batido. Nuvens de poeira entravam pelos carros do trem de modo assustador e em razão disso, fechavam-se as janelas, apesar do calor causticante. Na baixada fluminense a paisagem era de casas arruinadas, terrenos alagados, a população alquebrada e macilenta em razão das doenças que grassavam naquela localidade. 

Duas paradas eram aguardadas com ansiedade: a de Porto das Caixas e a de Cachoeiras de Macacu. Na primeira estação, vendedores pressurosos expunham suas mercadorias como laranja seleta e bahia, tangerinas, cajus, cambucás, sapotis, fruta do conde, banana, entre outras. Porém, era a chegada à estação de Cachoeiras de Macacu o momento mais aguardado e o fim da tormenta da baixada fluminense. Essa estação era bem movimentada. Todos os passageiros desciam para saborear as frutas e as afamadas empadas de camarão e palmito amargo. Vendedores de passarinhos entravam nos carros apregoando os rubros tiês e sabiás. A choradeira dos meninos era intensa quando os pais recusavam a compra dos pássaros e os vendedores só deixavam o carro quando o trem partia. Na subida da serra a temperatura mudava e um ar sereno e fresco, embalsamado pelo frescor da mata, entrava pelos carros do trem. Nesse momento, os inúmeros doentes que procuravam Nova Friburgo em busca da cura ou alívio para os pulmões pegavam um agasalho, enquanto outros, embalados pela docilidade do clima, cochilavam. Cessava a mastigação dos alimentos e o chão do trem era um amontoado de papel e de cascas de frutas. O bem-estar era geral. 

Quando se chegava ao fim da serra, mudava-se a locomotiva, pois para subir as montanhas o trem necessitava de uma cremalheira. Iniciava-se a descida rumo a Nova Friburgo. Quando se chegava à estação da cidade a saída do carro do trem era um verdadeiro atropelo. Boa parte da população friburguense se dirigia afoita até a estação para assistir à chegada do trem de passeio. Era um acontecimento social na cidade. Alguns iam esperar parentes e amigos, enquanto moças e rapazes corriam em peso envergando os seus melhores trajes para ‘ver e serem vistos’ no rendez-vous. As moças de chapéu e luvas e os rapazes com ‘roupa de festa’. Era o momento para o acerto das festas à noite ou no domingo".


Um trem de carga passando pelo centro de Nova Friburgo na década de 1960


TRISTE FIM

O trem deixou de circular em Nova Friburgo em 15 de julho de 1964. Esse meio de transporte marcou para sempre as gerações que conviveram com ele. “Não era simplesmente um meio de transporte. O trem pontuava a vida cotidiana dos friburguenses, a exemplo do ‘vassourinha’, o último trem que trafegava pelo centro de Nova Friburgo em direção a Sumidouro. Levou essa alcunha, pois varria as moças da rua quando passava obrigando-as a se recolherem em suas residências já que a moralidade não permitia que mulheres decentes ficassem pela rua.” afirma Janaína Botelho.

A desativação do ramal da Estrada de Ferro Leopoldina causou muita indignação! O escritor Ordilei Alves da Costa, não se conforma com posição adotada pelo governo federal:” Um dia essa ´miopia` político-administrativa chega ao fim e o trem retornará. O Brasil é o único país do mundo que “condenou a morte” o seu sistema ferroviário. Todos os demais modernizaram e ampliaram suas malhas. A Europa é toda interligada por ferrovias, com trens passando por dentro de cidades e por muitos cruzamentos em nível, praticamente sem acidentes. Ou seja, há perfeita harmonia entre os modais ferroviário e rodoviário e, claro, o beneficiado é o usuário. Vejam só esta realidade. Eu vou mensalmente a Niterói de ônibus e nunca essa viagem é realizada em menos de duas horas e meia. Normalmente é acima de três já tendo passado de quatro horas. Estamos falando de 125 quilômetros e um trem convencional, mesmo em baixa velocidade, como não pega congestionamento faria em pouco mais de uma hora. É até ridícula a constatação que depois de 131 anos nós regredimos absurdamente no tempo.”

Década de 1930: A estação de cargas e passageiros que acabou sendo demolida para a construção do atual palácio Barão de Nova Friburgo, sede do governo municipal


Como um profundo conhecedor do assunto e autor do livro “Apito do Trem”,Ordilei faz questão de registrar o exemplo da China,onde o avanço ferroviário é dos mais expressivos com cerca de cem mil quilômetros de trilhos, tornando-se a terceira malha ferroviária do mundo, ficando atrás somente dos USA (230.000 km) e da Rússia (130.000 km). Ele afirma que o país já possui a maior rede de trens de alta velocidade(cerca de 10.000 quilômetros) desenvolvidos com tecnologia própria e esses trens, bem como os tradicionais da Europa e USA que trafegam a 150 km/h, são altamente seguros e muito confortáveis e também faz questão de mencionar que: “Pesquisas recentes mostram que no Brasil morrem cerca 14.000 pessoas por ano em acidentes ou decorrência deles nas estradas e nas cidades brasileiras. 

Em 2010 a CNT – Confederação Nacional do Transporte, com dados da Polícia Rodoviária Federal e do IPEA –Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, realizou uma pesquisa nas rodovias federais que apresentou o seguinte resultado: 183 mil acidentes, com 61 mil feridos e 7 mil mortes. Comparando com o sistema ferroviário dos principais países, onde ocorreu baixíssima quantidade de acidente no mesmo período, torna-se (falando em estatística) irrelevante o número de feridos e mortos. O custo estimado de tão violentas perdas, humanas ou materiais, foi de R$ 14,1 bilhões em 2010. Por outro lado a economia no consumo de combustível do trem em relação aos veículos rodoviários é significativa. Há que se considerar, também, que as composições ferroviárias não enfrentam engarrafamentos, consequentemente tornam a viagem mais rápida. Já está provado que, juntamente com as queimadas que acontecem nas florestas do mundo, os veículos automotores são os maiores poluidores da atmosfera ao liberar o monóxido de carbono, aumentando, em muito, o tão falado efeito estufa.” Para ele as vantagens quando se compara o sistema ferroviário com o rodoviário são expressivas em relação a segurança, economia e combate a poluição. 

Ordilei Alves, em frente a atual prefeitura municipal


Para finalizar, Ordilei, que tem 70 anos e chegou a viajar algumas vezes de trem para Bom Jardim e também para Niterói, lamenta a política adotada no Brasil: “O presidente Juscelino Kubitschek em 1957 juntou 22 estradas de ferro e criou a Rede Ferroviária Federal, dando a falsa ilusão de que seria definida uma política consistente para melhorias e ampliação da malha ferroviária brasileira. Lamentavelmente aconteceu o oposto quando ele privilegiou o rodoviarismo, favorecendo em tudo a implantação da indústria automobilística, inclusive pavimentando milhares de quilômetros de rodovias unicamente com dinheiro público. Com a ferrovia ele usou o conhecido e triste procedimento que foi seguido pelos presidentes que o sucederam: deixar sucatear a malha para depois alegar falta de verba em razão do alto custo de recuperação. Dos 37.967 km existentes em 1957 restou cerca de 28.000, sendo que apenas 12.000 são utilizados pelas concessionárias para transporte de carga, após o processo de privatização acontecido em 1996 quando foi desativada a Rede Ferroviária Federal, mostrando o absurdo procedimento dos governos brasileiros de andar na contramão do mundo desenvolvido”.

Ordilei Alves é autor do livro “O Apito do Trem”, uma publicação que resgata parte da memória da cidade nos anos 50 e 60 e que tem o trem, de grande significado histórico para toda região, como pano de fundo para “as histórias de seus personagens na vida dentro das Fábricas; nos confrontos entre os estudantes dos diversos Colégios; na movimentação dentro dos Clubes; nas disputas esportivas, enfim, em toda a constante agitação da pequena e dinâmica Nova Friburgo.”

O empresário niteroiense Renato de Azevedo, que é apaixonado por Nova Friburgo, cresceu ouvindo histórias que seus familiares contavam sobre as viagens de trem. Essas impressões da infância o tornaram um aficionado por esse meio de transporte, o que o fez manter até hoje em sua casa de veraneio em Mury, uma maquete de uma estação ferroviária. Em sua imaginação ficaram registradas as sensações dos percursos pela mata atlântica, onde as locomotivas serpenteavam em meio a paisagens belíssimas e deslumbrantes passando por rios e cachoeiras. Renato não perde a esperança e mantém uma expectativa muito grande para que o acesso a serra volte a ter a opção através de uma linha férrea. Para ele, isso seria muito importante para dinamizar ainda mais o turismo da região. 


O niteroiense Renato de Azevedo, um apaixonado por Nova Friburgo, cresceu ouvindo histórias sobre a ferrovia


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